Para você que está se dando ao trabalho de ler este artigo, uma explicação inicial: o que digo aqui não tem conotação política – ao menos de minha parte. A preocupação que se reflete nestas palavras diz respeito ao dia a dia do Judiciário, na forma que alguns processos judiciais tem sido decididos e o reflexo disso na distribuição da Justiça ao cidadão comum.
Cada vez mais os profissionais do direito estão se deparando com situações inusitadas, em que a opinião pessoal de um Juiz tem mais força do que o texto de lei. É comum hoje ir ao cartório de uma Vara Cível para entender porque determinado pedido, que tem base legal, foi negado e ouvir frases como “Ah, é que o juiz, Dr. Fulano, não entende desta forma”. Ora, mas como fica aquilo que a Lei entende como correto?
Não estou falando aqui de situações limítrofes de interpretação, seja legal ou do fato, mas de pura desobediência à norma. Eu milito na advocacia cível, de família e sucessões desde 1995 e situações esporádicas como essa sempre existiram. A diferença é que hoje elas parecem uma tendência natural, um movimento com contornos próprios. Está claro que alguns juízes passaram a assumir um papel de ator principal, pouco se preocupando como a boa e velha imagem da imparcialidade e da defesa da legalidade.
Isso é coisa relativamente nova, que tem se popularizado especialmente após a ascensão do Juiz Sergio Moro e sua atuação na condução da operação Lava Jato. Não me cabe aqui discutir justiças ou injustiças de suas sentenças, mas apenas ressaltar fatos bastante claros: há um rompimento com a ideia de equidistância do Juiz; não há preocupação com a imagem de imparcialidade; há conotação política; e coloca o Magistrado como agente no processo Judicial.
Isso, no manual da Magistratura, seria impensável. Mas as consequências dizem o contrário: o Conselho Nacional de Justiça não se mexeu, as decisões de Moro foram mantidas em grau de recurso (por Desembargadores lançados sem aviso à arena mediática) e, ao final, foi premiado com um cargo político de Ministro da Justiça no governo de Jair Bolsonaro. Qual a mensagem que isso passa à sociedade? Repito: não me interessa discutir politica, mas sim o papel do Juiz na sociedade.
O Magistrado Português Manoel Soares, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, escreveu interessante artigo no site Opinião, em que via com espanto a ida de um juiz para o governo Brasileiro “depois de ter proferido decisões em processos de tanta relevância e actualidade política”. Sua preocupação não é com o governo Bolsonaro ou a culpabilidade de Lula, mas “com a dano causado na imagem de imparcialidade da justiça e no princípio da separação de poderes”.
Ele ressalta ainda que, quanto mais relevante é o caso, mais deve o Juiz permanecer em silêncio. Hoje em dia essa regra foi deturpada, com postagens explicitas em redes sociais, entrevistas à imprensa, ou discursos como palestrante convidado. Fez escola. Juízes manifestam-se livremente sobre processos judiciais que presidem ou sobre políticos que apóiam ou repudiam. Há até o caso da Desembargadora Marília Castro Neves, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que explicitamente condena certo político a um “paredão profilático”, “embora não valha a bala que o mate”.
Por conta de atitudes como esta, geradas no contexto da extrema polarização política, parece crescer um movimento dentro da Magistratura que rompe com a imagem do Juiz equidistante, para transformá-lo em agente de mudanças políticas, como se vestissem a capa de super-heróis modernos. É uma atitude semelhante ao dos militares linha-dura dos anos de chumbo, que escapavam da esfera de influência do comando da instituição e tinham voz própria (ala do Exército que o presidente Ernesto Geisel lutava sem sucesso para manter sob controle). Obviamente não comparo os efeitos práticos de um e outro movimento, apenas ressalto a tentativa de ruptura de uma ala radical daquilo que é considerado o bojo de uma instituição importantíssima à República. Aliás, isso é tão evidente que tomou ares de fenômeno social, influenciando o cidadão comum (já tive clientes me perguntando por que não quero ser juiz, se sou tão ético e competente!) e, principalmente, plantando na cabeça dos novos candidatos à Magistratura uma ideia equivocada sobre a carreira, contrária aos princípios éticos que sempre a balizaram.
Não me interesso, aqui, em discutir teorias conspiratórias. Minha intenção é somente mostrar que isso é algo que tem acontecido no cotidiano da advocacia, e que precisa ser encarado de frente.
Na minha opinião, não ajuda nada o fato de que as sessões do Supremo Tribunal Federal sejam transmitidas ao vivo para todo o País. Cada ministro sofre a enorme pressão de ser um ator no circo mediático que se forma em torno de cada julgamento. São transformados, querendo ou não, em agentes políticos, sofrendo perda sensível no equilíbrio e na moderação necessários a qualquer julgador. Não é esse o papel da Corte mais alta do País e não é esse o tipo de Juiz que precisamos em nossas comarcas.
O dia a dia da Magistratura não é feito de lava-jatos. Muitos juízes estão frustrados com sua rotina, enquanto outros usam qualquer oportunidade para brincar de Sérgio Moro. Aí surgem as brechas que atingem o cidadão comum: pouco interesse nos processos, má aplicação do direito e injustiças flagrantes. Sei que essa afirmação é chocante e quero deixar claro que isso não é uma regra geral – muito pelo contrário. Contudo, serão poucos os advogados militantes que não tenham sentido um aumento substancial dessas decisões anômalas em tempos recentes. Isso existe e é preciso que seja discutido.
Claro, a situação é complexa e há muitos outros pontos que colaboram com esse tipo de atitude. Exemplos: a) os altos salários da Magistratura, que atraem candidatos que buscam remuneração, mas que não necessariamente tenham vocação para o riscado; b) o incrível número de processos judiciais a cargo de cada Juiz; c) o advento dos processos eletrônicos, que criaram um verdadeiro “escudo” para juízes, que não mais dedicam seu tempo para o atendimento de advogados (“Doutor, é processo eletrônico? Então junte a petição que me manifesto nos autos.”) d) o próprio Novo Código de Processo Civil, que apesar de muitos acertos, limitou o número de situações para o agravo de instrumento (em prol da celeridade, é verdade), aumentando o grau de relevância das decisões dos Magistrados de primeiro grau. Há outras mais, não tão óbvias, mas que merecem estudo.
O fato é que a grande maioria dos juízes não age dessa forma. São profissionais ilibados que trabalham duro dentro dos limites do cargo e da ética, e que entendem bem sua função dentro da estrutura da República. Entretanto, sofrem enormes prejuízos pela imagem negativa que essa minoria lhes tem imposto.
É preciso que os próprios Tribunais do País tomem consciência desta situação e promovam discussões francas com a sociedade para encarar o problema da qualidade da prestação jurisdicional. O foco até aqui, com razão, tem sido a celeridade, e muito se caminhou para melhorar este aspecto. Mas é preciso dar um passo à frente e ter a coragem de olhar para o conteúdo dessas decisões, pois é isso que efetivamente distribui Justiça. Talvez um bom lugar para iniciar esse diálogo seria corrigir o rumo e trazer o Juiz de volta à equidistância, para que vista a toga e se livre da capa de super-herói. Caso não seja tomada uma atitude urgente, haverá perda na reputação e se dará munição aos que querem fazer do Judiciário um de refém no jogo político. Vamos minimizar o problema assumindo que ele existe e discutindo alternativas, e não varrê-lo para baixo do tapete.
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