O advogado Mario Solimene Filho ajuda a explicar o processo de alteração de nome e gênero de Transexuais pela ótica das decisões dos Tribunais
Falta de legislação torna pessoas trans mais vulneráveis
O direito a ter direitos
Gabriela Vinhal
As pessoas transgêneras no Brasil se ressentem da falta de uma legislação que lhes garanta direitos básicos. Das iniciativas nacionais, só constam um decreto federal que autoriza o uso do nome social em determinadas circunstâncias e uma portaria que determina a oferta, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), do processo transexualizador (conjunto de procedimentos para adequar o corpo à identidade de gênero).
Embora essas decisões sejam válidas para todo o país, elas são vistas como “frágeis” por não terem força de lei, o que torna mais fácil sua extinção. No âmbito estadual e municipal, há outras iniciativas, mas a maioria, salvo raras exceções, não atende as principais demandas da comunidade LGBT (leia abaixo).
Enquanto isso, as principais bandeiras dos movimentos trans enfrentam resistência no Congresso. É o que ocorre com a proposta de criminalização da LGBTfobia, ou seja, de atos de discriminação quanto à orientação sexual ou à identidade de gênero. Essa medida, ao lado de penas mais duras para agressões motivadas por intolerância, é vista como um dos fatores que pode reduzir o alto índice de homicídios de travestis e transexuais no país. Como mostrou a reportagem que abriu esta série, o Brasil lidera o ranking mundial desse tipo de crime, com pelo menos uma pessoa trans morta a cada três dias.
Arquivado
Um projeto de lei sobre o tema, de autoria da ex-deputada Iara Bernardi, chegou a ser aprovado na Câmara em 2006, mas, depois de chegar ao Senado, foi adiado e acabou arquivado, em 2014. Agora, o PL no 2.1.138/2015, de autoria da deputada Erika Kokay (PT- DF), tenta novamente criminalizar a LGBTfobia, propondo uma alteração na lei que pune o racismo.
Erika, porém, diz que é difícil fazer o texto avançar, principalmente devido à atuação
da bancada evangélica, que hoje reúne mais de 90 congressistas. “Mas é preciso resistir”, defende a deputada. Procurado pelo Correio, o presidente da Frente Parlamentar Evangélica, João Campos (PRB-GO), não respondeu.
A deputada do Distrito Federal é também a autora, ao lado de Jean Wyllys (PSOL-RJ), do PL no 5002/2013, que busca facilitar a obtenção de novos documentos pelas pessoas trans.
Pela proposta, adquirir a identidade com foto, nome e indicação de gênero se torna um processo simples e com poucas exigências. O texto, porém, permanece à espera de análise pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM).
Estão na fila ainda iniciativas como a que institui asilos e casas de repouso para idosos LGBTs e a que deixa explícito que a Lei Maria da Penha também vale para mulheres transexuas e travestis.
Na Justiça
Na prática, essa última medida já vale no país, mas apenas graças a uma decisão do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais, que instruiu juristas a estender a aplicação da lei que coíbe a violência doméstica para as mulheres transgêneras. Esse fato é um exemplo claro de como, na ausência de leis protetoras, a população trans é forçada a buscar abrigo no Poder Judiciário.
É o caso da troca do nome e do gênero na identidade civil. Hoje, para conseguir documentos adequados ao seu perfil, as pessoas trans precisam recorrer à Justiça, enfrentando um longo e burocrático processo. Que o diga a pernambucana Robeyoncé Lima, 28 anos, que encaminhou sua demanda em janeiro de 2016 e passou todo o ano sem uma resolução (no dia da publicação desta matéria, em 31 de dezembro, ela ainda aguardava).
Depois de se formar em direito, Rob, como é chamada pelos amigos, se tornou a primeira advogada transgênera a passar no exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em seu estado. Graças ao decreto federal, pôde fazer a prova usando seu nome social, mas não sabe se conseguirá estampá-lo em sua carteira.
“Eu ainda não sei com qual nome ela virá, porque ainda não ganhei o processo de troca do nome civil. Então, deve vir com meu nome de registro, e não com o qual me reconheço”, conta. A mesma dúvida permanece sobre como será chamada no diploma universitário. “É constrangedor e triste viver com essas incertezas. Em todas as situações que o documento é exigido, começo a me preparar para o pior. Matamos um leão a cada dia”, desabafa.
Para o processo, Rob precisou reunir uma série de documentos, incluindo um laudo
assinado por psiquiatra e psicólogo e reportagens de jornais e revistas para comprovar que é reconhecida por seu nome social.
Segundo o advogado Mario Solimene Filho, especialista em causas homoafetivas e LGBT, é a falta de uma legislação sobre o assunto que torna o processo demorado. No caso de mulheres transexuais, além de toda a burocracia, é preciso comprovar a mudança de sexo por meio de cirurgia.
Para as trans que se sentem confortáveis com o órgão genital com o qual nasceram e não querem operar, como é o caso de Rob, cabe ao juiz, junto com uma equipe de psiquiatras, analisar a troca do nome nos registros. A jurisprudência, segundo Solimene, é menos exigente com os homens trans, porque o processo transexualizador masculino ainda é recente no país.
O projeto de lei que aguarda análise na Câmara prevê que não serão mais exigidos para a troca do prenome intervenção cirúrgica de transexualização total ou parcial, terapias hormonais, qualquer outro tipo de tratamento ou diagnóstico psicológico ou médico e autorização judicial.
Segundo o advogado, a razão alegada para tanta burocracia é a dúvida se a mudança do nome civil é relacionada à busca pela identidade ou a uma tentativa de fraudar dívidas. “Mas a troca para um cisgênero é diferente. Sempre que a questão envolve trans, são impostos muitos condicionantes”, critica.
Poucas conquistas locais
Com pouquíssimos avanços no âmbito nacional, transexuais e travestis alcançam algumas vitórias em leis de alcance municipal e estadual. Essas iniciativas, no entanto, em grande parte das vezes, se limitam a medidas com impacto reduzido, como a definição de uma data para celebrar a visibilidade da população LGBT.
No mais recente Relatório de violência homofóbica no Brasil, publicado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH) em 2016, com dados de 2013, o Rio de Janeiro é citado como a unidade da Federação que mais aprovou instrumentos de proteção a essa parcela da sociedade, com 21. Em segundo lugar, aparecem São Paulo e Minas Gerais, com 11. Já Amapá e Roraima não registraram qualquer recurso legal.
No Distrito Federal, são mencionadas três iniciativas: a Lei no 2.615, de 26 de outubro de 2000, que determina sanções a práticas discriminatórias em razão da orientação sexual das pessoas; a portaria de 9 de fevereiro de 2010, elaborada pela secretaria de Educação, que garante aos trans o uso do nome social nas escolas públicas do DF; e a Lei no 4.374, de 28 de julho de 2009, que “institui no Distrito Federal o Dia de Combate à Homofobia”.
Embora notícias dessas medidas possam dar uma impressão de vitória para os movimentos organizados, aqueles que defendem os direitos de trans têm se mostrado pessimistas, devido ao perfil mais conservador do atual Congresso Nacional e a postura que o governo Temer tem demonstrado sobre o assunto. “O governo, até o momento, não fez sinalização de qualquer iniciativa que vá garantir os direitos das minorias. Nossa missão agora é tentar manter o que já conseguimos”, afirma a presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), a travesti Keila Simpson, 51 anos.
A secretária especial de Direitos Humanos, Flávia Piovesan, defende que a pauta LGBT seja tratada como uma política de Estado, muito maior que divergências político-partidária. “Não podemos aceitar ‘desperdício’ de vida em função da não aceitação do outro”, pontua.
O arquivo PDF da matéria original pode ser vista aqui: Site—correio-brasiliense—Falta-de-legislacao-torna-pessoas-trans-mais-vulneraveis
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