Abandono de lar no século 21: mitos e realidade

O abandono de lar conjugal é um conceito muito importante, mas ainda repleto de mitos. O objetivo é desfazer a nuvem de dúvidas e esclarecer o que realmente acontece, para que você não veja fantasmas e faça a coisa certa. Vamos lá?

O ABANDONO DE LAR NÃO EXISTE MAIS? O DIVÓRCIO NO ANTIGO CÓDIGO CIVIL

A mensagem que quero passar para você, leitor, como advogado de família, é a seguinte: o grande medo que se tem do abandono do lar (especialmente por parte das mulheres) é, em sua maioria, resultado de um MITO que se perpetuou com as histórias escabrosas que ouvimos em nossas próprias famílias. É verdade que estes contos fantasmagóricos tinham certa razão antigamente, mas esta realidade mudou muito e, hoje, não fazem mais sentido. Ou, ao menos, não em sua totalidade, como se verá adiante.


Para falar desse tema é necessário voltar um pouco no tempo e entender de onde isso tudo começou. Acho que vocês já sabem que tudo o que se refere a Direito de Família é determinado pelo Código Civil, certo? O grande problema é que o Código Civil que vigorou até o comecinho de 2002 foi feito no longínquo ano de 1916 (!), e por isso refletia uma sociedade do fim do século XIX. Nessa época, a desigualdade de gênero no Direito era ainda MUITO maior do que é hoje: as mulheres não tinham independência alguma, não tinham capacidade civil (ou seja, não podiam assinar documentos), e sua única função era cuidar dos filhos e do lar. Portanto, sem vida profissional, a realidade da mulher estava única e exclusivamente dentro dos muros de sua casa. Essa perspectiva era própria do Direito de Família do Código Civil de 1916, que também privilegiava as relações meramente contratuais, deixando o aspecto afetivo no esquecimento.

Nesse contexto, o abandono de lar tinha consequências sérias para o divórcio, e era usado como instrumento de pressão psicológica. Como a sociedade ainda era escancaradamente patriarcal, o fato era usado para “prender” a mulher dentro de casa, visando evitar que ela fugisse e deixasse os filhos menores para trás (na época, sua única obrigação na vida do casal). Vê-se que, ao menos na prática, o marido estava em normalmente em posição de ataque, e raramente de defesa. Esse abandono se aplicava para a mãe, que assim estaria cometendo uma falta gravíssima quanto aos deveres do casamento, não só do ponto de vista legal, mas também moral.

Nessa época o divórcio sequer existia, refletindo a ideia da doutrina religiosa de que a mulher devia obediência ao homem e de que a dissolução da sociedade conjugal era impossível. Isso também foi se alterando com o tempo, e Leis complementares trouxeram mudanças paulatinas, mas importantes, como a introdução do desquite em 1942 (que permitia a separação mas não o novo casamento), ou do Estatuto da mulher casada, de 1962 (que equiparou a mulher ao homem para os atos da vida civil). Mais tarde o divórcio foi também permitido, mas dependia da concordância dos dois ou uma razão plausível (normalmente a quebra dos deveres do casamento de um deles). 


Mario Solimene fala sobre abandono do lar, sem juridiquês

ABANDONO DE LAR: CÓDIGO CIVIL DE 2002 E O NOVO CONCEITO DE FAMÍLIA

O Novo Código Civil, de 2002, chegou com ares de modernidade e trouxe um novo olhar para o Direito de Família, priorizando o conceito de afetividade. Contudo, ainda carregava alguns resquícios do passado, já que não era possível que um dos cônjuges pedisse o divórcio simplesmente porque não queria continuar casado. Com isso, o abandono de lar ainda tinha muita importância, pois representava uma das tais “faltas” que permitiam a solicitação da separação judicial do casal sem concordância do outro.

A grande mudança veio com a emenda constitucional n° 66 de 2010, que acabou com essas exigências. Em linguagem coloquial, a emenda trouxe a ideia de que “se um não quer, dois não continuam casados”.

Uma das grandes consequências dessas mudanças é a de que a ideia do abandono de lar, ao menos nesse sentido, caiu no vazio. Virou algo obsoleto, já que não é mais necessário para a concretização do divórcio. 

OS EFEITOS E CONSEQUÊNCIAS DO ABANDONO DE LAR NOS DIAS DE HOJE: USUCAPIÃO FAMILIAR

Contudo, apesar de não ter mais efeitos com relação ao divórcio, o abandono de lar é ainda existe e é importante para fins de Direito Civil, mais especialmente no que concerne à questão imobiliária: o usucapião familiar. Veja o que diz o artigo 1.240-A do Código Civil:

“Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade dividia com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.”

Este dispositivo prevê a usucapião familiar, com o objetivo de cobrir a situação endêmica que atinge o Brasil pela enorme quantidade de pais que abandonam voluntariamente o lar, deixando a mulher sozinha com os filhos menores. Diante disso, o que normalmente acontece é o rompimento definitivo de laços, gerando o desamparo dessa mãe, que é deixada sem ao menos receber pensão alimentícia.

A ideia é evitar que aquele companheiro volte ao lar e exija a sua parte da propriedade. Portanto, uma das consequências do abandono de lar é proteger quem foi abandonado, garantindo a ela a propriedade exclusiva daquele imóvel, desde que esteja em sua posse ininterrupta pelo prazo determinado em lei, não sendo proprietária de outro imóvel e que o lar não ultrapasse a área de 250 m².

QUANTO TEMPO É CONSIDERADO ABANDONO DE LAR?

Para que o abandono de lar aconteça e gere direitos, no caso específico da usucapião familiar, é preciso o período de DOIS ANOS. Isso está expresso no própria lei (artigo 1240-A do Código Civil).

Outra observação a ser feita é que essas consequências não se aplicam apenas ao homem. A usucapião por abandono de lar pela esposa (repetimos: voluntário e com rompimento dos laços com a família) é algo também possível, e gera as mesmas consequências. Como dito, esses casos são menos frequentes do que o abandono voluntário pelo homem, mas o esposo que permanece no imóvel da família também poderá ter Direito à usucapião, se tornando proprietário exclusivo daquele bem.

ABANDONO DE LAR POR TRAIÇÃO

Para que a matéria fique bem clara para você, quando nos referimos a saída voluntária da pessoa do lar conjugal, isso quer dizer que não há nenhum evento que esteja forçando o homem ou mulher a sair de casa contra a vontade. Isso seria, como já dito, o caso de violência doméstica, em que a mulher se vê forçada a ir para outro lugar ou correr o risco de pagar com a própria vida pela insistência. Normalmente, a situação que ilustra bem essa saída voluntária é o caso de abandono do lar por traição, pois aqui não há qualquer pressão de dentro para fora. A pessoa sai porque quer sair, não porque está sendo forçada. Isso é a voluntariedade exigida para se configurar o usucapião familiar.  

ABANDONO DE LAR PELA ESPOSA: PERDA DE DIREITOS?

Deve ficar claro de uma vez por todas que, se a esposa abandonar o lar por estar sofrendo violência doméstica, ELA NÃO PERDE DIREITOS. Nestes casos há uma situação em que a saída do lar conjugal é mais do que necessária para preservar sua integridade física. Não tem qualquer cabimento achar que a mulher, além de ser aterrorizada, deverá ser punida por tentar salvar sua vida ou de seus filhos. Se o esposo é uma pessoa violenta, a prioridade é manter-se segura, e para isso há as medidas protetivas da lei Maria da Penha.

CONCLUSÃO

Por fim, deve ficar claro que a antiga ideia de abandono de lar, como um fantasma para a mulher que sai de casa por medo de violência doméstica, é um mito urbano que não existe. Esse bicho papão não tem mais qualquer efeito na realidade atual. O que há, na realidade, é a questão da usucapião familiar como garantia de direitos daquele que sofreu o abandono contra o cônjuge ou companheiro que partiu voluntariamente (ou seja, não para se proteger de violência!) e que não mais se interessou pelo bem estar emocional ou financeiro de sua família. 

*Com a colaboração de Lorena Marin Polesi

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Advogado formado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FADUSP - Largo de São Francisco), turma de 1994, com especialização em Direito Privado e Processo Civil. Inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, São Paulo, sob o número 136.987. Pós graduado (Pg.Dip.) e Mestre (MMus) pela University of Manchester e Royal Northern College of Music, Reino Unido (2003-2006). Curso de Extensão em Direitos Humanos Internacionais sob supervisão de Laurence Helfer, J.D, Coursera, School of Law, Duke University, EUA (2015). Inscrito como colaborador da entidade Lawyers Without Borders (Advogados Sem Fronteiras) e membro da International Society of Family Law (Sociedade Internacional de Direito de Família). Tomou parte em projetos internacionais pela defesa da cidadania e Direitos Humanos na Inglaterra, Alemanha, Israel e Territórios da Palestina. Fluente em Inglês, Espanhol, Italiano e Alemão.

5 Comentários

  • Boa tarde! Fui amaziada por 1 ano e 8 meses.meu marido m abandonou a 5 meses. Tenho direitos de esposa? Ainda ha tempo de resgistrar abandono material ? Por ja se passaram 5 meses que ele saiu de casa.

  • boa noite gotaria se tenho algum direito na minha separacao morei com meu ex por 23 anos ele foi bom e rui ao msm temp o bom pq colocava tudo dentro de casa mais ruim pq era muito ciumento e desconfiava de todos. eu comecei a conhecer alguns homens na net, e comecei a conversar com eles e eles falavam palavras que eu nao ouvia do ex ai comecei a mim relacionar com alguns pela net depois de um tempo eu decidir sair de casa mais meu ex nao aceitava foi ate que eu falei pra ele que nao queria ele mais pq estava falando com outro homem ele ficou possesso ai resolvi sair de casa sau eu e meu filho mais velho alugamos uma casa na mesma cidade ele ficava indo la e mim ameacando um dia ele foi e brigamos feio ai ele queria pegar meu celular ai eu quebrei ele . elel pegou meu celular e mandou arrumar e viu todas as conversas e fotos que mandei e audios vc acha que tenho direito ou nao sobre os bens que construimos juntos

  • Olá bom dia Dr Gratidão por explicações tão claras. Gostaria de saber o seguinte vivo um relacionamento de 10 anos com uma pessoa sendo que 5 anos morando junto com 2 filhos um menor com 12 anos e a maior c/ 24 anos ele se desentendeu c/ ela e apaga berros ficou bravo e mandou ela ir embora e foi trabalhar na volta me perguntou e aí já resolveu? E eu o que? Sua filha.e eu disse ela fica e ele respondeu e isso mesmo? E eu disse não posso mandar ela ir a garota está estudando e não posso mandar ela assim isso tudo foi no sábado 1/01/2022 no domingo pela manhã ele me acordou disse que sentia muito mas não tinha nada pra me falar não sabia o que dizer e arrumou as coisas dele e foi embora hoje fazem oito dias comprou um terreno com uma casa humilde onde iria construir nossa casa onde até comecei a comprar o material junto com ele mas enfim ele foi sozinho me deixou inclusive saiu e nem a parte dele no aluguel ele me deu disse que não ia pagar e mandou eu sair da casa e bota está conta na conta da minha filha o que o Sr me diz disso Dr? Ana .

  • Dr. bom dia! A respeito do imóvel não exceder 250m² no caso da usucapião familiar, o parâmetro é o terreno ou a construção propriamente dita?

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